Vestiu-se com trajes de vidente, que possuía
desde que sua ex-mulher rica comprara, para que ele usasse em uma festa à
fantasia. Depois da separação, sem ter onde cair morto, Caio começou a
trabalhar em bares e restaurantes, mas logo viu que a vida de homem honesto não
era pra ele. Na juventude, casou-se com uma mulher de posses e por isso já
tinha se adaptado ao lado bon-vivant
de estar no mundo: casa chique, comida grã-fina, roupa lavada e engomada,
viagens e mais viagens. Mamar nas tetas de outra pessoa, esse era o seu lema.
Após a
separação, ficou sem nada. Tinham se casado sob o regime da separação total de
bens, pois a ex-mulher era pós-graduada em esperteza. Ele nunca conseguiu
passar a perna nela no quesito finanças-graúdas. Tal lucidez que a acompanhava apenas
se deixava esmorecer quando ele vinha com seus encantos em palavras, mas, mesmo
assim, ela não deixava o palavrório de Caio desmanchar por muito tempo a
clareza com que via aquela relação.
A ex-mulher
era a única criatura viva em que sua retórica aguçada não alcançava os seus propósitos
sagazes. Caio fazia o que queria apenas usando o seu poder de persuasão. Foi
assim que - com aquela roupa de vidente e sua habilidade terapêutica em escutar
a fala alheia e os dramas dos outros -, em poucas horas, conseguiu levantar a
quantia necessária para pagar as dívidas penduradas.
Tudo ocorreu
rapidamente. Foi a um salão de cabeleireiros e lá ofereceu seus serviços de
vidente. As mulheres alvoroçaram-se por saber o futuro. Primeiro, porque o
vidente era portador de uma voz rouca e séria, que provocava nelas tremeliques,
depois porque a articulação do rapaz com as palavras transmitia um ar enigmático
de sujeito possuidor de dons transcendentais e, finalmente, porque já estavam desencantadas
com o cotidiano, queriam imergir no futuro. Tais ingredientes lhes davam a
segurança necessária para despender uma quantia considerável em uma sessão
premonitória com o sujeito fantasiado.
Esse foi o
começo da trajetória de Caio na arte de contar o futuro dos outros com
criatividade. Iniciava as sessões falando sobre relacionamentos, depois sobre
família, até chegar à vida profissional. Sempre sugestionava algumas viagens
que ocorreriam no meio do caminho. Nesse ínterim, observava as reações que seus
dizeres causavam sobre os clientes. Constatava, em alguns momentos, que suas
falas despertavam angústia e em outros, felicidade. Com isso, desviava o prumo
da fala para que as sensações ruins fossem desmanchadas e as boas aguçadas.
À medida que
suas previsões se desenrolavam, ele as direcionava para que aquelas pessoas
saíssem da sessão com ares mais tranquilos e serenos. Pensava consigo que
estava sendo um bom samaritano. Afinal, trazia, com suas premonições, histórias
bem sucedidas de vida: amores perfeitos, ao gosto do freguês, vidas
profissionais bem sucedidas. Acrescentava filhos nas previsões de mulheres que
queriam tê-los, não comentava sobre bebês nas sessões que sentia não poder
falar a respeito. Sapecava alguns problemas de saúde passageiros no meio das
falas, apenas para dar certa sensação de realidade aos relatos.
Caio descobriu
uma boa forma de levar a vida: vidente das almas desconfortáveis com o presente.
Com o passar de poucos anos, viu que poderia alçar voos mais altos, pois
dinheiro já não era problema, almejava então o poder. Refletiu: agora que
estava mais conhecido e respeitado entre as pessoas da comunidade, pensou em se
candidatar a vereador. Começou a se aliar aos figurões da indústria e dos jogos
de azar. Seduziu-os com o seu discurso de sujeito aliado às causas do segundo
setor. Afirmava, com convicção, que ao ingressar no mundo político lutaria pela
redução de tributos para as atividades industriais, além de buscar regulamentar
os jogos de azar.
Depois de duas
tentativas sucessivas, alcançou o tão almejado cargo de vereador. Com eloquência
e a defesa da ética na política, galgou nas eleições seguintes outros cargos
políticos mais poderosos. Passou a deputado federal, depois a senador. Com isso,
irradiou seu poder sobre os diversos ramos dos setores econômicos do país. Facilitou
o caminho dos seus aliados do crime organizado nas redes governamentais. Tramou
para que seus contribuidores de campanha vencessem licitações. Distribuiu
cargos para vários apadrinhados políticos nos setores estratégicos de governo.
Eis que não
contava com uma gravação da polícia federal. As escutas vazaram para a
imprensa, então seus tentáculos foram expostos. O julgamento público
realizou-se. O senador Caio, chamado de Sua Excelência, passou a ser denominado
pela população de Sua Excrescência nas rodas de bar.
Caio avaliou
junto com seus advogados, em que medida seria interessante juridicamente
permanecer com foro privilegiado ou não. Decidiu pelo foro. Seus advogados -
como bons processualistas, sabedores de todos os meandros recursais possíveis e
inimagináveis aos olhos dos cidadãos comuns - conseguiram fazer com que seu
processo se desenrolasse a passos de tartaruga. Consequência: Os crimes
prescreveram. Apesar disso tudo, não conseguiu safar-se da cassação do mandato.
Depois de
poucos anos, hoje Caio voltou a ser chamado de Sua Excelência e caminha pelas
alas do Congresso Nacional, mas nunca fora eleito com o voto de sua ex-mulher.
A vida anda em círculos, a política também. Crendices em um futuro promissor,
crendices em promessas de campanhas rechonchudas. Nesse meio, lá está Caio, ou
melhor, Sua Excelência Caio, de vidente a político.
(texto publicado pela Revista MeiaUm, n. 14, junho de 2012)
(texto publicado pela Revista MeiaUm, n. 14, junho de 2012)
Adorei, Hanna! Eu li na revista e vim aqui te dar os parabéns!!!
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