Se
não fosse daquele jeito estaríamos condensando nossas histórias, mas as
dúvidas, medos, diferenças nos enfraqueceram e fizeram com que temêssemos o
laço. Por deixar que tudo evoluísse para aquele fim, agora me sento sozinho
nesse quarto, olho pela janela e vendo não enxergo. Adormeceu o corpo. Gelou a
alma. Ainda assim o coração bate. Estar vivo sem querer. Como deixei
chegar a esse ponto? Por que não persisti? A vaidade fez de mim esse ser
perverso. A simples palavra que poderia reavivar as pontas dos fios que teciam
a nossa caminhada comum não saiu da minha boca no momento certo. Como
queria me transformar em Deus, rebobinar a história e começar tudo outra vez.
Passar
e repassar a cena da discussão na cabeça. As pedras removidas do passado apenas
para machucar o outro. Palavras ditas sem filtro. Como dói rememorar os gritos
irracionais. Parece que, em alguns momentos da vida, deixamos os instintos
tomarem conta do verbo. O animal que habita em nós é assustador. Remonta à
pré-história. Passado o momento de fúria, a dor que nos humaniza estilhaça a
alma. Quando se ama e se fere, logo depois vem a dor ácida do machucado feito
no outro. O tiro de bala volta-se contra nós como bala de canhão. A
vergonha me dominou.
Voltei-me
para dentro do quarto. Minha perna tremendo, não sustentou meu corpo. Caí no
chão. Pranto. Dor. Vômito. Frio. Cólica. Gritei: perdão! Não havia
ninguém. Apenas eu e os móveis. Arrastei-me até o banheiro. Liguei o chuveiro a
gás. Fechei a porta. Adormeci no box. Algum tempo passou. Abri os olhos
assustado. Estava sufocando. Sem quase ar. Levantei rapidamente. Caí. Estiquei
o braço. Alcancei a maçaneta. Consegui abrir a porta. Meus pés e minhas mãos
estavam dormentes e roxos. Amedrontei-me. Comecei a chorar me sentindo
patético. Pensei: como alguém pode ser tão ridículo? Perder
a pessoa que ama e agora estar prestes a perder os pés e as
mãos. Depois do susto, passei a ter vontade de gargalhar, mas
não conseguia. As gargalhadas não saiam, afinal o corpo me exigia ar e não
podia doar oxigênio às minhas gargalhadas. Um filme da cena atabalhoada passava
em minha mente.
Ensopado,
sem conseguir respirar direito, com o vapor do banheiro saindo desesperadamente
pela porta recém-aberta, os pés e as mãos começaram a formigar. Sinal de que o
sangue ainda circulava até as extremidades do corpo. Suspirei
aliviado: perdi a pessoa amada, mas todo o meu corpo havia
sobrevivido. Aquele fato acalentara parte da minha angústia: não
havia se esgotado a minha vontade de continuar seguindo em frente. O
incidente trouxe-me a consciência de que fosse o que fosse ainda estava
ali. Troquei a roupa molhada por uma seca, peguei um rodo e um pano,
enxuguei o banheiro, limpei o vômito, ainda assim a sensação de vazio
permanecia. Organizar o apartamento não foi suficiente para
que o buraco se preenchesse.
Quando
se ama, o medo de perder a pessoa amada paralisa em parte o que somos. Podamos
as arestas, sem perdermos a essência, para poder perpetuar o contato.
Podei-me por muitos anos, para que a relação pudesse se estirar no tempo. Parte
do que eu era, agora mais não sou. Mas não fui eu apenas o ser transformado no
ser atual, ela também fizera a sua parte para caminharmos juntos. Sempre se tem
que ceder para poder conviver. Esse é o preço que se paga para estar com o outro.
Para viver em sociedade. Para construir relações profundas.
Em
que momento tudo começou a se revirar em nossas vidas e começamos a nos
maltratar em palavras? Não sabia responder a essa pergunta. Tudo ainda estava
recente. Os cheiros, os paladares, os olhares. O frescor da separação deixara a
dor. Este sofrimento não me permitia limpar a poeira, para ver com clareza as
circunstâncias que contribuíram para se chegar àquele fim.
A
campainha tocou. Meu coração latejou. Será que era ela? Conversaríamos outra
vez? Mais uma chance se abriria? Lá estava o olho mágico que desvendaria o
mistério. Olhei pelo buraco. Era a Dona Geni, vizinha de porta. A
expectativa desmanchou-se. Abri a porta. Dona Geni me olhou assustada.
Perguntou:
- O
que há contigo meu jovem? Fiquei sem responder. Ela concluiu:
-
A Clô foi embora?
Meu
rosto confirmou. Ela perguntou se podia se sentar e contar uma história.
Disse-lhe que gostaria de ficar sozinho naquele momento. Mesmo assim disse:
-
Tem vezes que a gente se sente como se nos tivéssemos perdido, mas na verdade
nos encontramos.
Ela
saiu, sem dizer o motivo que a levara até minha casa. Creio que pediria um
pouco de açúcar ou de farinha ou algum legume. Muitas vezes, ela nos pedia
alguns ingredientes para finalizar a receita de uma torta ou de um cozido.
Assim que ela terminava de preparar os pratos, vinha com um bocado
para que pudéssemos experimentar. Acredito que aquele ato trazia o
real sentido de vizinhança. Ela gostava de se sentir em comunidade. Essas
trocas nos enredavam numa relação de amizade e o sentido
de pertencimento e solidariedade era aprofundado.
A
frase de Dona Geni martelava em minha cabeça, mas não fazia sentido. Só depois
de alguns anos a compreendi.
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