Havia
algum tempo que estavam naquela posição, detinham-se ali, pois ao menor sinal
de movimento do outro o valor vida estaria em risco. Perturbados
encontravam-se, sem saberem o que se passava pela cabeça do outro. Os sentidos
os faziam inteiramente presentes. Analisavam-se mutuamente. Pareciam animais em
busca do ataque final, para se servirem do banquete. Chegaram àquela situação
de forma obtusa, era como se o horizonte das escolhas em suas vidas houvesse se
estreitado de forma irreversível. Sabiam que, ou entravam em consenso, ou algum
dos dois sairia morto, ou ambos. Mas como confiar em sujeitos que portavam
facas e que não tinham históricos de vida dignos de confiança?
Aos
poucos, seus corpos foram ganhando pêlos, um transformou-se em tigre, o outro
em jegue. Um era a caça, o outro o caçador. Não tinham para onde correr, pois
estavam presos em uma sala fechada sem janelas, mas a razão humana
perpetuava-se em ambos. As facas, que traziam consigo, caíram ao chão após a
metamorfose. Permaneciam paralisados à espreita. Foi então que o sujeito que se
transformara em tigre se apercebeu do seu poder. Suas feições principiaram a se
configurar diante da nova realidade. O temor incorporou-se ao jegue, não
conseguia se mover. Sabia que a morte estava próxima, visto não ter como se
defender. Não tinha como argumentar algo, pois de humano somente restou a ele a
essência; a possibilidade de articular as idéias pelos sentidos foi-lhe retirada.
Contudo,
o tigre não conseguia atacar o jegue, pois aquele animal traduzia parte de sua
identidade. Desde criança, o jegue era cultuado como animal sagrado no vilarejo
onde começou sua vida. O homem entigrezado havia nascido em uma região árida e
seu povo sofria com a seca perversa, então via no jegue a imagem da fortaleza,
o alicerce para a sobrevivência. O animal inofensivo conseguia avançar pela
terra empoeirada e desbravá-la em busca de água de beber e de cultivar o
sertão. Assim, quedava o tigre apenas avistando afetuosamente o jegue. Em tal
paralisia dos dois animais, alguma coisa atormentava o animal indefeso, que se
questionava sobre o porquê de o tigre sabendo de seu poder não fazer nada
contra ele.
Após
algum momento, uma gosma começou a sair da pele de ambos. Um virou cobra, o
outro rato. A relação de poder havia se invertido. O antigo jegue
transformou-se em cobra e o tigre em rato. Nesse instante, o homem encobraiado
começou a rememorar uma fase obscura de sua história - o terror que havia
vivenciado enclausurado em um cubículo na época da ditadura militar. Os
horrores daquele período começaram a emergir de sua memória, pois os únicos
barulhos que ouvia eram de gritos desesperados dos companheiros de luta, os
tiros de fuzil e os ruídos dos ratos. Naquele período, os ratos traduziam-se na
base para a perpetuação de sua vida.
Imaginava,
durante os anos em que estivera trancafiado, que enquanto existissem ratos,
existiria vida. Aquele pensamento dava-lhe força, para que permanecesse em um
estado precário de sanidade. Não podia entrar em contato com outro ser humano,
a não ser os militares que vinham de quando em quando, mas esses equivaliam a
nada, pois eram impiedosos. Arrancavam-lhe as unhas, queimavam-no com pontas de
cigarro, para que delatasse os outros companheiros, mas nessas horas, só
pensava no rato. Era o animal que o enrijecia para fortalecer-lhe o espírito e
não abrir a boca nas sessões de terror. O Estado era a síntese da degradação
humana, as mentes que divergiam do sistema eram achatadas, calcificadas, já os
ratos eram a síntese da vida. Era o elo entre ele e o mundo, reconfortando-o.
Nesse
ínterim, a cobra não conseguia mover-se em direção ao rato. Matá-lo estava fora
de cogitação. Havia um laço histórico que o detinha ali, sem se aproximar do
rato. Uma amizade que se transportou até o momento do encontro com aquele
sujeito que portava uma faca e agora havia se transubstanciado naquele animal
tão familiar. Por outro lado, o rato amedrontava-se ouvindo o chacoalhar da
calda da cobra, sentia-se impotente e não entendia qual era o motivo que fazia
a cobra não se mover em sua direção. Apenas começava a compreender que no mundo
animal, a luta pela sobrevivência não se distanciava tanto assim do mundo
humano, pois tudo era uma questão da lei do mais forte.
Em
seguida, um vendaval trouxe os uivos do vento que batia nas paredes e no
telhado do lugar sem janelas. Lentamente, o telhado foi se desmanchando e a
areia caindo sobre a cobra e o rato. No mesmo instante, os corpos dos animais
foram se metamorfoseando em diversos outros animais. Um assistia ao corpo do
outro e observavam as belas modificações provocadas pelas transformações. Até
que se viram parados diante de uma imensidão de areia, pois a casa onde se
encontravam havia virado pó e se misturado ao tapete bege do deserto. Os
sujeitos, depois de alguns minutos, voltaram ao seu estado inicial,
entreolharam-se maravilhados, miraram as facas, mas subitamente, seus corpos se
desmancharam em areia. O vento se intensificou e um redemoinho formou-se. Não
se sabia o que era um, o que era o outro, o que era a casa, o que era o
deserto.
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