sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Comoção pela diferença

Sentada há pelo menos trinta minutos no banco de uma parada esperava o ônibus passar. Depois de tanto tempo sozinha, finalmente chega alguém e senta-se na outra extremidade do banco. Era um senhor que aparentava ter em torno de cinqüenta anos de idade. Lá estávamos eu e ele silenciosos, em pleno sábado, em um local onde trafegava quase nenhum carro.

A espera pelo ônibus me deixava enfastiada, pois a sensação da passagem do tempo era nítida. E quando sinto o tempo passar, como se fosse um conta-gotas, mais vontade tenho de que algo aconteça, para que eu não persista dando conta da presença dos segundos.  Foi nesse momento em que a angústia pela sensação de perda de tempo me tomava que o senhor começou a balbuciar algumas palavras. Ele parecia um louco com o olhar fixo no horizonte, sem perceber que tinha alguém ao seu lado. Do tédio passei ao espanto. Amedrontei-me. Não sabia o que fazer. Se saísse dali, deveria caminhar por muito tempo até achar outra parada, mas se permanecesse poderia correr o risco de ser abordada por aquele senhor que me parecia ter algum distúrbio. Parei por um instante e me indaguei: qual o problema de uma pessoa falar sozinha?

Ele, de repente, olhou para o lado e se deu conta de que eu estava ali. Disse: “Perdão por estar falando sozinho. Não notei sua presença. Estou atordoado pelo o que acabo de ouvir. Há momentos na vida da gente em que não acreditamos ser possível tal tipo de reação, mas acaba acontecendo quando menos se espera. Por várias vezes já fui vetado em entrevistas de emprego. Creio que a cor da minha pele é um quesito analisado com profundidade por quem me entrevista. Não crêem na capacidade de um negro desempenhar alguns tipos de funções. Você nunca deve ter passado por tal tipo de discriminação. Mas dói sentir ser apartado pelo outro. Você ser julgado por algo que te caracteriza, que faz parte da sua identidade”.

Tentei amenizar a situação dizendo que algumas vezes pelo fato de ser mulher, já tinha sofrido assédio moral no trabalho por parte de colegas. Afirmei: “quando se é mulher em um posto de chefia também se sofre preconceitos por parte de alguns”. Ele me interrompeu: “mas há diferenças entre a raça e o gênero. Não se costuma ver negros - como eu, sem nenhum tipo de miscigenação, como você pode ver sou um negro azulado - desempenhando alguns tipos de trabalhos e quando se vai a uma entrevista é nítido o olhar do avaliador ou da avaliadora. Hoje superaram esse olhar e transpareceram para a fala a forma de me verem e creio que a forma com que fui tratado está no inconsciente de várias pessoas. A sutileza das palavras escolhidas não me deu forças pra contra-argumentar. Falaram-me: ‘a empresa precisa de pessoas com a clareza das funções que deverão ser desempenhadas fato que não consigo vislumbrar na sua pele.’ Depois me pediu desculpas e complementou: ‘não quis dizer pele, quis sim dizer em você.’

Como se a raça fosse pressuposto de vários tipos de funções. Há categorias em que a característica da raça conta menos – lixeiro, por exemplo - e há outras funções em que ela conta mais. Não quero aqui tecer conceitos muito rebuscados da questão da fragmentação da sociedade em identidades pouco transparentes. Mas dói tanto ver a sua preterição pelo fato de ser algo que você não escolheu ser, apenas é. Por exemplo, quando se é homossexual. Basta encenar para os outros que é um heterossexual, para tanto se lima trejeitos e a forma de se vestir, passa-se a ser um personagem em um mundo real. Isso para que os outros te aceitem sem que precise passar pelo o que eu passei. Esconde-se sua essência para não sofrer em palavras. Talvez, você que é brasileira, branca, provavelmente heterossexual e de olhos claros não consiga sentir na pela essa dor aqui no Brasil. Mas tente ir para um país onde há preconceito contra latino-americanos e que o seu destino para esse país se deva a razões econômicas, e por isso você tenha entrado no país de forma ilegal. Na mesma hora, você vai conseguir sentir esse olhar que te anula  e te corrói. Sem que você possa fazer muita coisa a respeito”.

Então falei a ele: “sentir a dor do outro é a melhor forma de não provocar dor”. Foi então que ele olhou diretamente pra mim e se pôs a chorar copiosamente. Havia chegado o ônibus desse senhor e então ele se foi.

Daí me veio à mente todos os comentários de pessoas mais próximas que me reprimiam dizendo que eu dou corda pra qualquer maluco que se senta ao meu lado. As pessoas têm medo de dialogar com estranhos. Talvez seja o indício de uma sociedade violenta e desigual, o que faz com que as pessoas se temam mutuamente. Para alguns, qualquer ser humano é suspeito até que ouçam referências sobre ele. Primeiro, têm de saber se a pessoa tem profissão ou se estuda; em seguida se não é filho de chocadeira. Se a pessoa não tiver dentes na boca nem chegam perto. É a neurose coletiva que deixa os seres humanos mais isolados em suas vivências interiores pouco compartilhadas.

 Mas nunca tive problemas, nessa trajetória de dar corda pra estranhos. Creio que as minhas aventuras dialógicas são acompanhadas por anjos protetores que não permitem qualquer tipo de aproximação de perturbados perigosos.  Conversar com pessoas no meio da rua é um risco que se corre, mas se der sorte, pode-se ter momentos inusitados de trocas que nunca se teria se não se abrisse a essa oportunidade. Às vezes, fechamo-nos num círculo tão hermético em que os que não são parecidos conosco não têm acesso ao miolo onde paira a nossa identidade. Os choques são imensos quando não se pensa igual, por isso acaba-se por viver em círculos higienizados, onde a menor sujeirinha é dedetizada com um argumento de ordem. Mas há momentos na vida da gente em que a escuta nos abre a mundos em que nunca estaríamos se não fosse pela palavra do outro.

(texto publicado pela Revista Meiaum, n. 6, em setembro de 2011)

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