quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Um presente.

 

Este ano tinha um propósito: passar meu aniversário junto à natureza. E como o planeta Terra gira e é sim redondo, parece que as constelações fizeram seu papel e colocaram no meu caminho pessoas com uma alma que é puro amor.

Estava pesquisando para ir ao Jalapão. Já tinha enviado mensagens para algumas agências. Mas, como um encanto, desses que não se explica racionalmente, recebo uma mensagem de uma amiga que já não via há uns 10 anos, mas que sempre tive uma conexão forte. A mensagem continha um convite para um festival indígena. Um mergulho profundo na cultura de um povo ancestral.

Na mesma hora, falei: vou com vocês! E como sou grata ao transcendental, porque não há o que explique tamanha coincidência.

Essa viagem me trouxe significados profundos. Reconheci algo que não vejo nesse mundo ocidental individualista que vivemos. Tive contato com um povo em que a cooperação, o coletivismo e a unidade o traduzem. Vi uma criança indígena fraturar um osso brincando e toda a comunidade ir ao encontro desse ser, preocupado e aflito com a dor do pequeno. Todos se mobilizaram tentando consolar, se fazer presente. Uma imagem que de tamanha beleza me trouxe o verdadeiro sentido da palavra acolhimento.

Mais do que ver, pude sentir os rezos, os cânticos que atravessavam as noites e que nos faziam amanhecer. As danças compassadas que em sua simplicidade nos mobilizavam e nos deixavam em transe por sua lindeza.

Vozes potentes com fôlego pujante que perpassavam os corpos de quem escutava e se permitia dançar com eles. Rodas eram formadas ao redor da fogueira, cuidada com zelo por um dos participantes, depois se desfaziam e se formavam filas de mulheres indígenas que bailavam em frente aos violões com suas vozes que eram puro mantra ancestral. Movimentos orgânicos que se formavam e depois se desfaziam. O ir e vir dos corpos marcados pelos tons das vozes cadenciadas que tocavam o coração.

Pela primeira vez, pude observar o céu com tamanha vivacidade. Foram três noites em claro, intercaladas com outras bem dormidas. As noites das cerimônias, dos rituais da floresta eram noites de abraçar a natureza. Em uma delas, a lua estava cheia e pude ver a silhueta das árvores que contornavam a aldeia. Pela primeira vez na vida, vi o nascer da lua, vi sua caminhada pelo céu e antes dela se pôr, o sol nascer entre as bananeiras. Uma imagem que carregarei na memória de tão impactante.

Me permiti observar as imagens que se formavam nas nuvens, sentindo os sons da floresta misturados aos cantos indígenas penetrantes. Uma das figuras em nuvem que mais me impactou foi a de uma mulher com um turbante e o beiço inferior sendo fisgado por um peixe imenso. Nas noites mais escuras, de lua minguando, as estrelas cadentes riscavam o céu e as constelações eram mais visíveis.

O pajé trazia os significados do que aquilo tudo simbolizava. Na primeira noite, ele falou as palavras que devemos frutificar em nossas vidas: alegria, amor e respeito. Ele esmiuçava cada uma delas e tudo fazia sentido com sua flauta que era soprada margeando a fogueira.

De dia, as brincadeiras indígenas faziam as vezes. E eu era tomada por um estranhamento digno de quem foi criada na cidade, com aversão a tudo que remeta à violência. Mesmo tentando me afastar dos meus julgamentos ocidentalizados, não consegui mergulhar nas brincadeiras. Sei que talvez traduzissem a força e a ideia de sobrevivência na floresta; mas, ainda assim, apenas consegui participar da primeira delas, antes de saber que todas tinham um quê de provocar dor.

Na brincadeira que deu início ao festival, foram formadas duas filas; de um lado mulheres; do outro, homens. De repente eles vinham, sem dó nem piedade, ao nosso encontro e pisavam com força o nosso pé. Eu sem entender o porquê daquilo, da dor que se refletia daquela pisada no meu pé, fiquei inerte. Uma das indígenas, com um português precário, porque a maior parte das pessoas daquela tribo não fala o português, me disse brava: Você tem que pisar o pé dele! Mas, como nunca fui de pisar no pé de ninguém, me descobri um ser que não consegue se defender. Em síntese, o indígena saiu da brincadeira com o pé ileso.

Daí em diante, escolhi ser apenas espectadora das brincadeiras, que se traduziam em varadas nas costas, de pessoas sendo jogadas em barro, de pessoas sendo balançadas em cima da fogueira, em paus sendo jogados com força nas costas de homens e mulheres sem distinção e sem mensuração de força… E quando vinham ao meu encontro, eu logo me afastava. Olhava para as brincadeiras e pensava, será que eles não pensam que alguém poderia sair com um traumatismo craniano? Eu e minha tendência ao drama. Mas, no final, todos saíram sãs e salvos. Talvez apenas com algumas escoriações.

Lá conheci a Samaúma, árvore espírito da floresta, uma árvore sagrada para os indígenas. E não precisavam explicar o porquê de tamanha reverência a ela, bastava olhá-la.

Naquela aldeia conheci um movimento que existe desde a década de 70, o Movimento Arco-íris, jovens que mergulham na filosofia hippie e se reúnem pelo mundo em festivais. A ideia de colaboracionismo estava lá, cada um colocava no chapéu o que tinha de dinheiro. Afinal, estamos em uma sociedade capitalista! E assim tentavam ajudar, em alguma medida, os indígenas que os alimentavam, davam abrigo e os acolhiam em seus rituais.

Não há dúvida de que a musicalidade e a energia jovial daquele grupo ajudou a trazer mais vida àquelas noites e às brincadeiras indígenas, porque a juventude é assim: destemida! E aquele grupo vivia no tom do que era proposto sem muito julgar; pareciam vida em plenitude. Sabiam que viviam também da solidariedade do povo, muitos se transitavam de um festival para o outro por carona e buscavam abrigo em troca de trabalho voluntário, alguns eram artesãos, outros acredito que eram sustentados pelos pais… Mas, a maioria tinha uma ideia de sustentabilidade e de viver no presente sem muito pensar no futuro, porque se estavam vivendo intensamente o agora sem muito estresse as chances de adoecerem eram mínimas.

Conheci algumas histórias de vida de parte daqueles jovens, alguns chegaram ali por traumas, outros porque os pais também eram hippies e já cultivavam essa ideia de plena liberdade desde que nasceram, outros apenas eram jovens mergulhando numa ideia que fazia sentido para eles. Ao me despedir e um deles me falar que eu curtiria participar de um desses festivais Arco-íris, logo pensei silenciosamente que talvez aguentasse ficar apenas três dias em um desses festivais hippies, daí pra frente seria pura tortura...

Enfim, confesso bem baixinho, que no final dessa jornada significativa estava desejando um banheiro para não precisar fazer o número um no mato e o número dois no banheiro agro-florestal. Também, já tava desejando comer umas comidinhas mais diversificadas e cansada dos guardiões da floresta (os mosquitos) que fizeram a festa na minha perna. Só não senti falta de cama, porque dormir em rede é bom demais...

quarta-feira, 26 de junho de 2024

Uma carta.


 

Se você soubesse o quanto você é capaz de desvendar e vasculhar cada canto empoeirado das suas memórias, das histórias colhidas da boca dos outros, dos pedaços de papéis lidos, de paisagens vistas, dentre tantas outras possibilidades de colher imaginações; você não ficaria tão inerte, tão preguiçosa para desembuchar suas criações em papel. Na palavra, a gente se descobre, a gente se revela, a gente se aprofunda.

Toda vez que alguém te fala que não sabe ler, nem escrever, uma dor de solidão se abriga no seu coração, porque não saber ler, nem escrever, chega a ser um vácuo intangível da existência humana. Não saber ver o mundo também pelas palavras, chega a ser uma forma de não caminhar pela vida.

Você sente uma urgência de que a todos seja dada a oportunidade de ter uma existência mais presente de silêncio acompanhada pela imaginação das vozes reveladas pelas palavras, é que a ninguém pode ser dada a chance de não aprender o alfabeto. É na palavra escrita que se completa uma parte importante de se dar passos por outros caminhos para além daqueles que damos com nossos próprios pés.

 

(Esse texto foi inspirado por uma conversa com uma amiga que tava buscando informações para irmos a um passeio de barco. Ela escreveu pelo WhatsApp a um guia e ele pediu para que ela falasse em áudio, porque ele não sabia ler nem escrever. Quando ela me falou isso me deu um aperto no peito e, pela primeira vez, vi uma função social nessa função do WhatsApp - o áudio. Todos deveríamos ter o direito de sermos alfabetizados).

terça-feira, 18 de junho de 2024

Entre uma estrela e o vazio.


 

Havia uma estrela que brilhava e falava sem parar, me deixava atordoada com seu brilho e sua ausência de silêncio. Como queria que ela não fizesse parte do sistema planetário, mas lá ela estava. Falava tanto que se repetia sem cessar: mesmas histórias, mesmos repertórios. Ela me deixava exaurida e desesperada. Queria fugir, mas não conseguia, eu era o que do universo não se via, mas se sabia que existia. Eu era o vazio. Aquele espaço entre uma estrela e outra, entre um planeta e outro, eu era tudo aquilo. Mas de todos os cantos do universo, era apenas aquele lugar, perto daquela estrela tagarela, em que eu ficava mais ausente de mim. Ela me absorvia, me consumia. Puxava todo o meu centro. Eu definhava, sem ter a escolha de partir. Eu curtia somente o barulho de explosões intergaláticas, apenas. Como queria deixar de ser o vazio que permeia tudo e tentar escapar daquela que não consegue enxergar além de si.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Tecle-me, toque-me.

 

Tecle-me: provoque o meu riso.

Me enrosque em suas palavras

E que meu ventre se contorça

Até os músculos relaxarem.

Aí tudo será êxtase.


Toque-me: sem posse,

Sem desespero,

Sem pudores,

Estarei aqui:

Aguardando-te, sem censura, nua.


Crua sou:

Ser selvagem sem mistérios,

Sem tédio,

Sentimentos profundos,

que permitem chegadas e partidas aeradas.


Venha:

Desmascararemos nossas incongruências

E assim azulejaremos memórias.

Juntos permitindo momentos de estarmos a sós

E é apenas isso que desejo:

Sossego acompanhada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Um instante entre o dilúvio e o cerrado.


 

Um dia de tempestade e frio, de ruas inundadas, de bueiros transbordantes, de cheiro de esgoto, de carros sendo levados pelas correntezas, de ruas transformadas em rio. Um dia de espanto e medo. Lá estava ela, presa em seu carro, em uma parte da rua onde o volume de água ainda não tinha soterrado as rodas. Estava paralisada, seu corpo congelava diante da realidade de carros deslizando a sua frente. Diante de pessoas que escapavam pelas janelas e nadavam até uma parte mais elevada para não serem tragadas pelas águas. Cenas que nunca imaginaria vivenciar. Até então, apenas tinha assistido tais imagens em telejornais, em filmes e lido em livros que floresciam a força da natureza frente a impotência humana. Em sua vida, até aquele instante, as chuvas apenas lhe permitiram brincar em poças inofensivas quando criança e de fugir da água suja empoçada que espirrava nela quando os carros e ônibus passavam em alta velocidade sujando sua roupa enquanto caminhava pelas calçadas. Pela primeira vez, viu uma tempestade transformar dia em noite em poucos segundos, viu gelo cair do céu e estraçalhar os vidros de carros. Se chegasse em casa, quem sabe teria condições de ver a dimensão do estrago. Aquelas imagens se turvaram em seus pensamentos, ela voou para outro plano, para suas memórias de dias sem chuva. Outras sensações inundaram-na, dias em que viajava pelo interior do Goiás, dias secos, dias em que ao olhar pela janela via cercas de fazendas e um capim amarelado. Dias de boca rachada e de nariz ensanguentado pela aridez do cerrado. Sempre parava em algum posto para comer um empadão e beber um guaraná. Momento em que os entardeceres eram de um dourado avermelhado, que provocavam matizes de cores exuberantes que acalentavam sua alma. Sempre, na estrada, também parava e deixava-se escutar os cantos de sabiás e bem-te-vis. Admirava o vermelho das caliandras, os amarelos dos ipês, os brancos das pequenas flores que saiam do mesmo caule, o chuveirinho do cerrado. Estava em um estado de paz completa nesses pensamentos que bloqueavam sua visão para o que estava se passando naquela tempestade. Tais parênteses duraram quem sabe alguns minutos, talvez uma hora. Tempo suficiente para as águas afundarem seu carro e no seu desespero por sair dali, ela acordou.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Um encontro de solidões.


 

Olharam um para o outro e sentiram uma cumplicidade imediata. Havia algo ali, uma afinidade que reconheceram antes de se falarem. Depois daquele dia de conversas e atividades com os habitantes da casa de repouso, todos se reuniram para falar amenidades e conversarem sobre o próximo encontro no mesmo local em que tinham começado a voluntariar naquele dia. Eles se entreolharam como se já soubessem que poderia emergir dali algo. Uma amizade pelo menos. Naquele dia nada falaram entre eles.

Ela ainda sem emprego, distribuía currículos e aceitava qualquer vaga fosse ao preço que fosse. Morava com os pais que possuíam uma relação nada saborosa. Na esquina, antes de chegar em casa, já se sentiam as vozes dos dois. Eram anos de gritos e lamentos sem fim, eram viciados em tons nada gentis. Em sua infância, ainda conseguia ver cenas de carinho mescladas com brigas. Com os anos, não enxergava gota de afeto, tudo era escuridão e desespero, mas ali permaneciam, eram um amalgama de solidão acompanhada. Na rouquidão de suas vozes, ambos se reconheciam. Mas ela estava abusada daquilo tudo, queria sair da casa em que já não era percebida. Mesmo assim, seus pais autocentrados não conseguiam ver a dor latejante do ser que conceberam. Ela era a desculpa para aquilo tudo, sentia. A razão pela qual ambos justificavam estarem juntos. Desde muito pequena se sentia culpada por gritos que não vinham de sua boca.

Ele era um jovem que teve de tudo na vida, menos a presença e afeto de seus pais. Desde os primeiros passos, foi acostumado a ser cuidado por babás e assim que se afeiçoava a elas e sua mãe percebia, logo as mandava embora achando alguma razão sem sentido para convencer a si e ao marido. Ele lembrava o nome de todas as cuidadoras, mesmo aquela que cuidou dele quando ainda era um bebê e que o levou a pé ao jardim de infância no primeiro dia daquele mundo cheio de gente. Sua casa era silenciosa, seus pais falavam baixo, nunca viu nenhuma cena descompassada. Sentia-se a monotonia da rotina. Sua mãe sempre preocupada com a boa forma, com a pele, com o trabalho que conquistou a duras penas um lugar de destaque; o pai era um bonachão que mergulhava seu tempo livre nos livros, naqueles raros momentos em que estava em casa. O barrigudo, como o chamava carinhosamente em seus pensamentos, viajava incessantemente a trabalho. Era escalado para fazer plantões no jornal onde trabalhava. Ele nunca entendeu como seus pais, pessoas tão diferentes, pudessem estar juntas. Como nunca falaram sobre como se conheceram, nem suas histórias de vida, só conseguia entender o que era exposto por eles espontaneamente. Ali não havia intimidade. Seus pais eram completos desconhecidos e seu imaginário completava as lacunas daquela família.

No voluntariado, ela e ele descobriram vagarosamente, no segundo dia de encontro, que não tinham a mesma idade. Ela com vinte e ele com vinte e cinco. Ele disse que começou a trabalhar em uma agência de marketing a partir dos vinte e dois, morava sozinho desde então, porque pediu aos pais à época se poderiam ceder uma das kits, que eles tinham para investimento. Os pais aceitaram sob a condição dele pagar uma quantia pelo uso. Agradeceu por disponibilizarem o lugar pagando o aluguel com um preço abaixo de mercado e desde então perdeu a convivência com os seres que o colocaram no mundo.

ela tinha uma família que entrava mês saia mês sempre endividada. O cheque especial era a única saída para conseguirem ao menos fechar o ciclo mensal com a conta de luz paga e alguns itens básicos na casa. A mãe reclamava que ela era um estorvo, que não prestava nem para arrumar um emprego. Ela conseguiu a duras penas concluir um curso técnico de gastronomia no SENAC, porque sua tia percebeu que assim que a sobrinha concluíra o ensino médio, não conseguiria entrar na faculdade. Sugeriu um dia, como quem não quer nada, que estavam sendo abertos cursos profissionalizantes no SENAC. Ela imediatamente se inscreveu e se dedicou como se fosse sua única chance de sobrevivência. Mesmo assim, poucas portas se abriram e as raras brechas foram ocupadas por pessoas que possuíam algum tipo de indicação, eram filhos ou amigos de alguém dos estabelecimentos que anunciavam vagas de emprego.

Nesse segundo dia de voluntariado, ele e ela conversaram e comungaram suas solidões. Souberam cada detalhe de suas famílias, se sentiram pertencentes pela primeira vez a algo. Perguntavam-se internamente: como poderiam se ver num primeiro momento e já sentirem que havia algo que os enlaçavam com tamanha veemência e já no segundo dia saberem detalhes um do outro que não tinham sequer confessado para si mesmos? Foi um encontro de plenitude. Saíram da casa de repouso juntos, mas ao atravessarem a rua, ainda em transe por aquela junção de palavras e significados que borbulhavam o encantamento mútuo, não perceberam o ônibus vindo e todas as potencialidades daquele encontro foram abreviadas.