quinta-feira, 6 de junho de 2024

Um instante entre o dilúvio e o cerrado.


 

Um dia de tempestade e frio, de ruas inundadas, de bueiros transbordantes, de cheiro de esgoto, de carros sendo levados pelas correntezas, de ruas transformadas em rio. Um dia de espanto e medo. Lá estava ela, presa em seu carro, em uma parte da rua onde o volume de água ainda não tinha soterrado as rodas. Estava paralisada, seu corpo congelava diante da realidade de carros deslizando a sua frente. Diante de pessoas que escapavam pelas janelas e nadavam até uma parte mais elevada para não serem tragadas pelas águas. Cenas que nunca imaginaria vivenciar. Até então, apenas tinha assistido tais imagens em telejornais, em filmes e lido em livros que floresciam a força da natureza frente a impotência humana. Em sua vida, até aquele instante, as chuvas apenas lhe permitiram brincar em poças inofensivas quando criança e de fugir da água suja empoçada que espirrava nela quando os carros e ônibus passavam em alta velocidade sujando sua roupa enquanto caminhava pelas calçadas. Pela primeira vez, viu uma tempestade transformar dia em noite em poucos segundos, viu gelo cair do céu e estraçalhar os vidros de carros. Se chegasse em casa, quem sabe teria condições de ver a dimensão do estrago. Aquelas imagens se turvaram em seus pensamentos, ela voou para outro plano, para suas memórias de dias sem chuva. Outras sensações inundaram-na, dias em que viajava pelo interior do Goiás, dias secos, dias em que ao olhar pela janela via cercas de fazendas e um capim amarelado. Dias de boca rachada e de nariz ensanguentado pela aridez do cerrado. Sempre parava em algum posto para comer um empadão e beber um guaraná. Momento em que os entardeceres eram de um dourado avermelhado, que provocavam matizes de cores exuberantes que acalentavam sua alma. Sempre, na estrada, também parava e deixava-se escutar os cantos de sabiás e bem-te-vis. Admirava o vermelho das caliandras, os amarelos dos ipês, os brancos das pequenas flores que saiam do mesmo caule, o chuveirinho do cerrado. Estava em um estado de paz completa nesses pensamentos que bloqueavam sua visão para o que estava se passando naquela tempestade. Tais parênteses duraram quem sabe alguns minutos, talvez uma hora. Tempo suficiente para as águas afundarem seu carro e no seu desespero por sair dali, ela acordou.

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