segunda-feira, 3 de junho de 2024

Um encontro de solidões.


 

Olharam um para o outro e sentiram uma cumplicidade imediata. Havia algo ali, uma afinidade que reconheceram antes de se falarem. Depois daquele dia de conversas e atividades com os habitantes da casa de repouso, todos se reuniram para falar amenidades e conversarem sobre o próximo encontro no mesmo local em que tinham começado a voluntariar naquele dia. Eles se entreolharam como se já soubessem que poderia emergir dali algo. Uma amizade pelo menos. Naquele dia nada falaram entre eles.

Ela ainda sem emprego, distribuía currículos e aceitava qualquer vaga fosse ao preço que fosse. Morava com os pais que possuíam uma relação nada saborosa. Na esquina, antes de chegar em casa, já se sentiam as vozes dos dois. Eram anos de gritos e lamentos sem fim, eram viciados em tons nada gentis. Em sua infância, ainda conseguia ver cenas de carinho mescladas com brigas. Com os anos, não enxergava gota de afeto, tudo era escuridão e desespero, mas ali permaneciam, eram um amalgama de solidão acompanhada. Na rouquidão de suas vozes, ambos se reconheciam. Mas ela estava abusada daquilo tudo, queria sair da casa em que já não era percebida. Mesmo assim, seus pais autocentrados não conseguiam ver a dor latejante do ser que conceberam. Ela era a desculpa para aquilo tudo, sentia. A razão pela qual ambos justificavam estarem juntos. Desde muito pequena se sentia culpada por gritos que não vinham de sua boca.

Ele era um jovem que teve de tudo na vida, menos a presença e afeto de seus pais. Desde os primeiros passos, foi acostumado a ser cuidado por babás e assim que se afeiçoava a elas e sua mãe percebia, logo as mandava embora achando alguma razão sem sentido para convencer a si e ao marido. Ele lembrava o nome de todas as cuidadoras, mesmo aquela que cuidou dele quando ainda era um bebê e que o levou a pé ao jardim de infância no primeiro dia daquele mundo cheio de gente. Sua casa era silenciosa, seus pais falavam baixo, nunca viu nenhuma cena descompassada. Sentia-se a monotonia da rotina. Sua mãe sempre preocupada com a boa forma, com a pele, com o trabalho que conquistou a duras penas um lugar de destaque; o pai era um bonachão que mergulhava seu tempo livre nos livros, naqueles raros momentos em que estava em casa. O barrigudo, como o chamava carinhosamente em seus pensamentos, viajava incessantemente a trabalho. Era escalado para fazer plantões no jornal onde trabalhava. Ele nunca entendeu como seus pais, pessoas tão diferentes, pudessem estar juntas. Como nunca falaram sobre como se conheceram, nem suas histórias de vida, só conseguia entender o que era exposto por eles espontaneamente. Ali não havia intimidade. Seus pais eram completos desconhecidos e seu imaginário completava as lacunas daquela família.

No voluntariado, ela e ele descobriram vagarosamente, no segundo dia de encontro, que não tinham a mesma idade. Ela com vinte e ele com vinte e cinco. Ele disse que começou a trabalhar em uma agência de marketing a partir dos vinte e dois, morava sozinho desde então, porque pediu aos pais à época se poderiam ceder uma das kits, que eles tinham para investimento. Os pais aceitaram sob a condição dele pagar uma quantia pelo uso. Agradeceu por disponibilizarem o lugar pagando o aluguel com um preço abaixo de mercado e desde então perdeu a convivência com os seres que o colocaram no mundo.

ela tinha uma família que entrava mês saia mês sempre endividada. O cheque especial era a única saída para conseguirem ao menos fechar o ciclo mensal com a conta de luz paga e alguns itens básicos na casa. A mãe reclamava que ela era um estorvo, que não prestava nem para arrumar um emprego. Ela conseguiu a duras penas concluir um curso técnico de gastronomia no SENAC, porque sua tia percebeu que assim que a sobrinha concluíra o ensino médio, não conseguiria entrar na faculdade. Sugeriu um dia, como quem não quer nada, que estavam sendo abertos cursos profissionalizantes no SENAC. Ela imediatamente se inscreveu e se dedicou como se fosse sua única chance de sobrevivência. Mesmo assim, poucas portas se abriram e as raras brechas foram ocupadas por pessoas que possuíam algum tipo de indicação, eram filhos ou amigos de alguém dos estabelecimentos que anunciavam vagas de emprego.

Nesse segundo dia de voluntariado, ele e ela conversaram e comungaram suas solidões. Souberam cada detalhe de suas famílias, se sentiram pertencentes pela primeira vez a algo. Perguntavam-se internamente: como poderiam se ver num primeiro momento e já sentirem que havia algo que os enlaçavam com tamanha veemência e já no segundo dia saberem detalhes um do outro que não tinham sequer confessado para si mesmos? Foi um encontro de plenitude. Saíram da casa de repouso juntos, mas ao atravessarem a rua, ainda em transe por aquela junção de palavras e significados que borbulhavam o encantamento mútuo, não perceberam o ônibus vindo e todas as potencialidades daquele encontro foram abreviadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário