quarta-feira, 29 de maio de 2024

Fragmentos nada retilíneos

 

Não acredito que estou há trinta segundos olhando para dentro da geladeira procurando açúcar. Nem cheguei aos cinquenta, a Covid não me trouxe sequelas (acho) e eu continuo a procurar coisas no lugar onde até hoje não as coloquei. Se um dia encontrar forma de gelo com água no armário, vou realmente começar a me preocupar. Já pensei em fazer meditação, mas sofro por não conseguir me concentrar na respiração (os pensamentos me afundam). Ultimamente, vejo dizeres cheios de significado. Na verdade, frases de efeito. Reverberam tanto que chega o impulso de partilhar. Mas, em poucos segundos, volto a mim e penso: não faça isso, vão pensar que você alcançou a idade em que as pessoas têm mais tempo para espalhar esse tipo coisa (e eu acho que não estou nela). Ainda não comecei a anunciar bons-dias, boas-tardes, boas-noites com sax do Kenny G de fundo musical. De uns tempos pra cá, tenho observado mais as pessoas, sejam elas próximas; sejam, distantes e enxergo algo de volúvel em todos nós. Há um rareamento das trocas revitalizantes. Talvez seja essa cidade tão planejada que, por vezes, parece vila de interior sem a presença de estranhos tentando fuxicar sua rotina. Ou talvez seja a preguiça de sair do conforto das escolhas regadas a redes mais tecnológicas que dão menos trabalho de sair, pegar uma condução e disponibilizar tempo. Talvez porque a troca de percepções de modos diferentes de ver o mesmo assunto demanda reflexão a partir de outro ponto de vista e isso cansa. Talvez porque seja mais fácil colocar sua versão dos fatos numa rede e ver o número de corações que essa visão provoca. Talvez preencher a vida com encontros de pele, olho e silêncio esteja sendo dissolvida. Só espero que, no próximo abrir de geladeira, eu volte a procurar: ovos, água e o que lá habite.

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