domingo, 26 de maio de 2024

Um fugitivo


 

Na esquina da delegacia, estava ali ao seu alcance uma escada. Não acreditou que o pintor que dava ares de humanidade àquela prisão imunda tinha esquecido aquele instrumento tão necessário para o escape. Pensou que era obra divina aquela oportunidade. Desde criança, sua mãe lhe dizia: “somos pobres, mas temos dignidade”. Aquela frase era nebulosa na sua cabeça infantil. Sua mãe sempre ausente, trabalhava na casa dos outros, cuidando desses estranhos. Passava mais tempo na condução de ida e volta do que na própria casa, aquele lugar que queria transformar em lar, mas nunca conseguira. Ela, aos trinta e cinco anos, ficou de cama e de lá nunca mais saiu. Ele teve de sustentar uma família de três: ele, ela e o irmão caçula. Tinha treze anos. Tentou vender laranja nos semáforos, mas nunca alcançou nem pro arroz com feijão. Surgiu uma oportunidade, o tráfico. Pensou que não importaria, continuaria sendo digno, porque não mataria ninguém e não consumiria o produto da venda. Começou como vendedor de maconha nas baladinhas dos brancos. Chegavam até ele já bêbados, apareciam com aquelas roupas alternativas e lhe tratavam com dignidade. Até ofereciam um cigarrinho de vez em quando, sempre o procuravam para a compra dos produtos e o chamavam pelo apelido. Ele correspondia a toda sua clientela com a mesma dignidade, como um menino de negócios. Ficou como vendedor de maconha até os dezesseis, depois o líder também começou a tratá-lo com a tal dignidade, pois os pontos onde vendia sempre eram os mais procurados pelos filhos de classe média. Mesmo depois de três anos naquela lida, não se sentia parte daquilo, mas quando pensava em sair, algo o puxava de volta. Ali encontrava respeito e sustento. Afinal, com o dinheiro da venda para os idealistas com conta bancária recheada se sentia parte dessa outra classe que nunca nem tangenciaria, mas de algum modo, quando vendia e recebia sorrisos cúmplices, algo de conforto, de respeito o tocava a alma. Com a venda, conseguia levar, arroz, feijão, frango, até legumes e frutas para casa. A conta fechava ao final do mês sem empréstimos. Tava certo de sua dignidade. Sua mãe melhorou um pouco sua saúde débil. Seu irmão continuou os estudos. Ele permanecia na lida da venda e o líder do tráfico olhando todo o seu esforço o transformou em líder da boca. Começou a agir com os vendedores de maconha e outros afins como lidava com os da classe média, mas isso não funcionou, teve de ir mudando esse seu jeito, potencial cidadão de bem; para outro, mais agressivo, mais vingativo. Se não fosse assim, o dinheiro da venda não chegava, era desviado. Teve de colocar respeito e ele vinha pela brutalidade. Já com vinte e um anos, era o braço direito do líder, já tinha mandado matar alguns dos subalternos que o traiam, mas ainda sentia sua dignidade latente. Afinal, ele só cumpria a lei da lealdade, ali não era terra de ninguém. Sua mãe, aos quarenta e poucos anos, levou a cabo seu propósito. Se foi por conta de um cólera. Seu irmão conseguiu se vincular a um programa de governo para poder entrar na faculdade. O primeiro a conseguir isso na família: era seu orgulho, seu filho postiço. Já ele, como líder do tráfico naquela região, tinha sido pego pela polícia. Agora estava diante de uma oportunidade, ali estava a escada. Teria de escalar, esticar o braço, se machucar, porque no topo do muro havia cacos de vidro. Foi o que fez. Com sangue nas mãos, saiu correndo pelas ruas e nunca mais sentiu ter dignidade.

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