quarta-feira, 26 de junho de 2024

Uma carta.


 

Se você soubesse o quanto você é capaz de desvendar e vasculhar cada canto empoeirado das suas memórias, das histórias colhidas da boca dos outros, dos pedaços de papéis lidos, de paisagens vistas, dentre tantas outras possibilidades de colher imaginações; você não ficaria tão inerte, tão preguiçosa para desembuchar suas criações em papel. Na palavra, a gente se descobre, a gente se revela, a gente se aprofunda.

Toda vez que alguém te fala que não sabe ler, nem escrever, uma dor de solidão se abriga no seu coração, porque não saber ler, nem escrever, chega a ser um vácuo intangível da existência humana. Não saber ver o mundo também pelas palavras, chega a ser uma forma de não caminhar pela vida.

Você sente uma urgência de que a todos seja dada a oportunidade de ter uma existência mais presente de silêncio acompanhada pela imaginação das vozes reveladas pelas palavras, é que a ninguém pode ser dada a chance de não aprender o alfabeto. É na palavra escrita que se completa uma parte importante de se dar passos por outros caminhos para além daqueles que damos com nossos próprios pés.

 

(Esse texto foi inspirado por uma conversa com uma amiga que tava buscando informações para irmos a um passeio de barco. Ela escreveu pelo WhatsApp a um guia e ele pediu para que ela falasse em áudio, porque ele não sabia ler nem escrever. Quando ela me falou isso me deu um aperto no peito e, pela primeira vez, vi uma função social nessa função do WhatsApp - o áudio. Todos deveríamos ter o direito de sermos alfabetizados).

terça-feira, 18 de junho de 2024

Entre uma estrela e o vazio.


 

Havia uma estrela que brilhava e falava sem parar, me deixava atordoada com seu brilho e sua ausência de silêncio. Como queria que ela não fizesse parte do sistema planetário, mas lá ela estava. Falava tanto que se repetia sem cessar: mesmas histórias, mesmos repertórios. Ela me deixava exaurida e desesperada. Queria fugir, mas não conseguia, eu era o que do universo não se via, mas se sabia que existia. Eu era o vazio. Aquele espaço entre uma estrela e outra, entre um planeta e outro, eu era tudo aquilo. Mas de todos os cantos do universo, era apenas aquele lugar, perto daquela estrela tagarela, em que eu ficava mais ausente de mim. Ela me absorvia, me consumia. Puxava todo o meu centro. Eu definhava, sem ter a escolha de partir. Eu curtia somente o barulho de explosões intergaláticas, apenas. Como queria deixar de ser o vazio que permeia tudo e tentar escapar daquela que não consegue enxergar além de si.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Tecle-me, toque-me.

 

Tecle-me: provoque o meu riso.

Me enrosque em suas palavras

E que meu ventre se contorça

Até os músculos relaxarem.

Aí tudo será êxtase.


Toque-me: sem posse,

Sem desespero,

Sem pudores,

Estarei aqui:

Aguardando-te, sem censura, nua.


Crua sou:

Ser selvagem sem mistérios,

Sem tédio,

Sentimentos profundos,

que permitem chegadas e partidas aeradas.


Venha:

Desmascararemos nossas incongruências

E assim azulejaremos memórias.

Juntos permitindo momentos de estarmos a sós

E é apenas isso que desejo:

Sossego acompanhada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Um instante entre o dilúvio e o cerrado.


 

Um dia de tempestade e frio, de ruas inundadas, de bueiros transbordantes, de cheiro de esgoto, de carros sendo levados pelas correntezas, de ruas transformadas em rio. Um dia de espanto e medo. Lá estava ela, presa em seu carro, em uma parte da rua onde o volume de água ainda não tinha soterrado as rodas. Estava paralisada, seu corpo congelava diante da realidade de carros deslizando a sua frente. Diante de pessoas que escapavam pelas janelas e nadavam até uma parte mais elevada para não serem tragadas pelas águas. Cenas que nunca imaginaria vivenciar. Até então, apenas tinha assistido tais imagens em telejornais, em filmes e lido em livros que floresciam a força da natureza frente a impotência humana. Em sua vida, até aquele instante, as chuvas apenas lhe permitiram brincar em poças inofensivas quando criança e de fugir da água suja empoçada que espirrava nela quando os carros e ônibus passavam em alta velocidade sujando sua roupa enquanto caminhava pelas calçadas. Pela primeira vez, viu uma tempestade transformar dia em noite em poucos segundos, viu gelo cair do céu e estraçalhar os vidros de carros. Se chegasse em casa, quem sabe teria condições de ver a dimensão do estrago. Aquelas imagens se turvaram em seus pensamentos, ela voou para outro plano, para suas memórias de dias sem chuva. Outras sensações inundaram-na, dias em que viajava pelo interior do Goiás, dias secos, dias em que ao olhar pela janela via cercas de fazendas e um capim amarelado. Dias de boca rachada e de nariz ensanguentado pela aridez do cerrado. Sempre parava em algum posto para comer um empadão e beber um guaraná. Momento em que os entardeceres eram de um dourado avermelhado, que provocavam matizes de cores exuberantes que acalentavam sua alma. Sempre, na estrada, também parava e deixava-se escutar os cantos de sabiás e bem-te-vis. Admirava o vermelho das caliandras, os amarelos dos ipês, os brancos das pequenas flores que saiam do mesmo caule, o chuveirinho do cerrado. Estava em um estado de paz completa nesses pensamentos que bloqueavam sua visão para o que estava se passando naquela tempestade. Tais parênteses duraram quem sabe alguns minutos, talvez uma hora. Tempo suficiente para as águas afundarem seu carro e no seu desespero por sair dali, ela acordou.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Um encontro de solidões.


 

Olharam um para o outro e sentiram uma cumplicidade imediata. Havia algo ali, uma afinidade que reconheceram antes de se falarem. Depois daquele dia de conversas e atividades com os habitantes da casa de repouso, todos se reuniram para falar amenidades e conversarem sobre o próximo encontro no mesmo local em que tinham começado a voluntariar naquele dia. Eles se entreolharam como se já soubessem que poderia emergir dali algo. Uma amizade pelo menos. Naquele dia nada falaram entre eles.

Ela ainda sem emprego, distribuía currículos e aceitava qualquer vaga fosse ao preço que fosse. Morava com os pais que possuíam uma relação nada saborosa. Na esquina, antes de chegar em casa, já se sentiam as vozes dos dois. Eram anos de gritos e lamentos sem fim, eram viciados em tons nada gentis. Em sua infância, ainda conseguia ver cenas de carinho mescladas com brigas. Com os anos, não enxergava gota de afeto, tudo era escuridão e desespero, mas ali permaneciam, eram um amalgama de solidão acompanhada. Na rouquidão de suas vozes, ambos se reconheciam. Mas ela estava abusada daquilo tudo, queria sair da casa em que já não era percebida. Mesmo assim, seus pais autocentrados não conseguiam ver a dor latejante do ser que conceberam. Ela era a desculpa para aquilo tudo, sentia. A razão pela qual ambos justificavam estarem juntos. Desde muito pequena se sentia culpada por gritos que não vinham de sua boca.

Ele era um jovem que teve de tudo na vida, menos a presença e afeto de seus pais. Desde os primeiros passos, foi acostumado a ser cuidado por babás e assim que se afeiçoava a elas e sua mãe percebia, logo as mandava embora achando alguma razão sem sentido para convencer a si e ao marido. Ele lembrava o nome de todas as cuidadoras, mesmo aquela que cuidou dele quando ainda era um bebê e que o levou a pé ao jardim de infância no primeiro dia daquele mundo cheio de gente. Sua casa era silenciosa, seus pais falavam baixo, nunca viu nenhuma cena descompassada. Sentia-se a monotonia da rotina. Sua mãe sempre preocupada com a boa forma, com a pele, com o trabalho que conquistou a duras penas um lugar de destaque; o pai era um bonachão que mergulhava seu tempo livre nos livros, naqueles raros momentos em que estava em casa. O barrigudo, como o chamava carinhosamente em seus pensamentos, viajava incessantemente a trabalho. Era escalado para fazer plantões no jornal onde trabalhava. Ele nunca entendeu como seus pais, pessoas tão diferentes, pudessem estar juntas. Como nunca falaram sobre como se conheceram, nem suas histórias de vida, só conseguia entender o que era exposto por eles espontaneamente. Ali não havia intimidade. Seus pais eram completos desconhecidos e seu imaginário completava as lacunas daquela família.

No voluntariado, ela e ele descobriram vagarosamente, no segundo dia de encontro, que não tinham a mesma idade. Ela com vinte e ele com vinte e cinco. Ele disse que começou a trabalhar em uma agência de marketing a partir dos vinte e dois, morava sozinho desde então, porque pediu aos pais à época se poderiam ceder uma das kits, que eles tinham para investimento. Os pais aceitaram sob a condição dele pagar uma quantia pelo uso. Agradeceu por disponibilizarem o lugar pagando o aluguel com um preço abaixo de mercado e desde então perdeu a convivência com os seres que o colocaram no mundo.

ela tinha uma família que entrava mês saia mês sempre endividada. O cheque especial era a única saída para conseguirem ao menos fechar o ciclo mensal com a conta de luz paga e alguns itens básicos na casa. A mãe reclamava que ela era um estorvo, que não prestava nem para arrumar um emprego. Ela conseguiu a duras penas concluir um curso técnico de gastronomia no SENAC, porque sua tia percebeu que assim que a sobrinha concluíra o ensino médio, não conseguiria entrar na faculdade. Sugeriu um dia, como quem não quer nada, que estavam sendo abertos cursos profissionalizantes no SENAC. Ela imediatamente se inscreveu e se dedicou como se fosse sua única chance de sobrevivência. Mesmo assim, poucas portas se abriram e as raras brechas foram ocupadas por pessoas que possuíam algum tipo de indicação, eram filhos ou amigos de alguém dos estabelecimentos que anunciavam vagas de emprego.

Nesse segundo dia de voluntariado, ele e ela conversaram e comungaram suas solidões. Souberam cada detalhe de suas famílias, se sentiram pertencentes pela primeira vez a algo. Perguntavam-se internamente: como poderiam se ver num primeiro momento e já sentirem que havia algo que os enlaçavam com tamanha veemência e já no segundo dia saberem detalhes um do outro que não tinham sequer confessado para si mesmos? Foi um encontro de plenitude. Saíram da casa de repouso juntos, mas ao atravessarem a rua, ainda em transe por aquela junção de palavras e significados que borbulhavam o encantamento mútuo, não perceberam o ônibus vindo e todas as potencialidades daquele encontro foram abreviadas.