Olharam
um para o outro e
sentiram uma cumplicidade imediata. Havia
algo ali, uma afinidade que reconheceram antes de se falarem. Depois
daquele dia de conversas e atividades com os habitantes da casa de
repouso, todos se reuniram para falar amenidades e conversarem sobre
o próximo encontro no mesmo local em que tinham começado a
voluntariar naquele dia. Eles se entreolharam como se já soubessem
que poderia emergir dali algo. Uma amizade pelo menos.
Naquele
dia nada falaram entre eles.
Ela
ainda sem emprego, distribuía
currículos
e aceitava
qualquer vaga
fosse ao
preço que
fosse.
Morava
com os
pais
que possuíam uma relação nada saborosa. Na esquina, antes de
chegar em casa, já se sentiam as vozes dos dois. Eram
anos de gritos e lamentos sem fim, eram viciados em tons nada gentis.
Em sua infância, ainda conseguia ver cenas de carinho mescladas com
brigas. Com
os anos, não enxergava gota de afeto, tudo era escuridão e
desespero, mas ali permaneciam,
eram um
amalgama
de solidão acompanhada. Na
rouquidão de suas vozes, ambos
se reconheciam. Mas ela estava abusada daquilo tudo, queria sair da
casa em que já não era percebida. Mesmo
assim,
seus pais autocentrados não conseguiam ver
a
dor latejante
do
ser que conceberam.
Ela era a desculpa para aquilo tudo, sentia. A razão
pela qual ambos justificavam estarem juntos. Desde muito pequena se
sentia culpada
por gritos
que
não vinham de sua boca.
Ele
era um jovem
que teve
de
tudo na vida, menos a
presença e afeto de
seus pais.
Desde os
primeiros passos,
foi
acostumado a ser cuidado por babás
e assim
que
se afeiçoava a elas
e
sua mãe percebia, logo as
mandava embora achando alguma razão sem sentido para convencer a
si e ao marido.
Ele lembrava o nome de todas as
cuidadoras,
mesmo aquela que cuidou dele quando ainda era um bebê e que o
levou a pé ao
jardim de infância no primeiro dia daquele
mundo cheio de gente.
Sua casa era silenciosa, seus pais falavam baixo, nunca viu nenhuma
cena descompassada. Sentia-se a monotonia da rotina. Sua mãe sempre
preocupada com a boa forma, com a pele, com o trabalho que conquistou
a duras penas um lugar de destaque; o pai era um bonachão que
mergulhava seu
tempo livre nos
livros, naqueles
raros momentos em que estava em casa.
O
barrigudo, como o chamava carinhosamente em seus pensamentos,
viajava
incessantemente
a trabalho. Era
escalado para fazer plantões no jornal
onde trabalhava. Ele
nunca
entendeu como seus
pais,
pessoas tão diferentes, pudessem estar juntas.
Como
nunca falaram sobre como
se conheceram, nem
suas histórias de vida, só conseguia entender o que era exposto por
eles espontaneamente. Ali
não havia intimidade.
Seus pais eram completos
desconhecidos e
seu imaginário completava as lacunas daquela família.
No
voluntariado, ela
e ele
descobriram vagarosamente,
no
segundo dia de encontro,
que não tinham a mesma idade. Ela com vinte e ele com vinte e cinco.
Ele disse que começou a trabalhar em uma agência de marketing a
partir dos vinte e dois,
morava sozinho desde então,
porque pediu aos
pais à
época
se poderiam ceder uma das kits, que eles tinham para investimento. Os
pais aceitaram sob a condição dele pagar uma quantia pelo
uso.
Agradeceu por disponibilizarem o lugar pagando o aluguel com um preço
abaixo de mercado e
desde então perdeu a convivência com os seres que o colocaram no
mundo.
Já
ela tinha
uma
família que
entrava mês saia mês sempre endividada. O
cheque especial era
a única saída para conseguirem ao
menos
fechar
o ciclo mensal com a
conta de
luz paga e
alguns itens básicos na casa.
A
mãe reclamava
que ela era um estorvo, que não prestava nem para arrumar um
emprego. Ela conseguiu a duras penas concluir um curso técnico de
gastronomia no SENAC, porque
sua
tia percebeu
que assim que a sobrinha concluíra o ensino médio, não conseguiria
entrar na faculdade. Sugeriu
um
dia, como
quem não quer nada,
que estavam sendo abertos cursos profissionalizantes
no
SENAC.
Ela
imediatamente se inscreveu e se dedicou como se
fosse sua
única chance de sobrevivência.
Mesmo
assim, poucas portas se abriram e
as raras brechas foram ocupadas por pessoas que possuíam algum tipo
de indicação, eram
filhos
ou amigos
de alguém dos
estabelecimentos
que anunciavam vagas de emprego.
Nesse
segundo dia de voluntariado, ele e ela conversaram e comungaram suas
solidões. Souberam cada detalhe de suas famílias, se sentiram
pertencentes pela primeira vez a algo. Perguntavam-se
internamente: como
poderiam se ver num primeiro momento e já sentirem que havia algo
que os enlaçavam com tamanha veemência e já no segundo dia saberem
detalhes um do outro que não tinham
sequer confessado para si mesmos? Foi um encontro de plenitude.
Saíram da casa de repouso juntos, mas ao atravessarem a rua, ainda
em transe por aquela junção de palavras e significados que
borbulhavam o encantamento mútuo, não perceberam o ônibus vindo e
todas as potencialidades daquele encontro foram abreviadas.